Leia o artigo do professor e Sociólogo Paulo Cabral

PARA QUE CIÊNCIAS HUMANAS?

Por Paulo Cabral, Sociólogo e professor.

É triste constatar que o Brasil está sendo governado a partir de percepções do mais rasteiro senso comum. O presidente e seu ministro da educação, numa clara demonstração de ignorância a respeito de premissas elementares da produção de conhecimento, imaginando ainda o mundo anterior à revolução cibernética, quando caixinhas rígidas separavam os saberes como se fossem estanques, propuseram eliminar o financiamento à filosofia e ciências humanas, supondo que sejam desnecessárias ao desenvolvimento do país. Chegaram a afirmar que é preciso investir em áreas capazes de dar retorno à sociedade, citando veterinária, engenharia e medicina, como se aquelas fossem improdutivas.
Essa visão até nem seria problemática se as mencionadas autoridades não estivessem investidas em cargos cuja importância impede essa forma simplista de enxergar a realidade. Lembro-me de quando optei por cursar ciências sociais, em 1968, um curso ainda pouco divulgado. Meu pai, que sonhara para mim o curso engenharia elétrica (como competente eletricista, ele desejava me transmitir a sua experiência prática), conformou-se , apoiando minha escolha. Mas, ele ficava muito bravo com os amigos, pessoas simples como ele, que não entendiam o que eu poderia fazer com esse curso.
Formado em 1972, na fase mais sombria da ditadura militar, éramos vistos, bacharéis e licenciados em ciências sociais, como subversivos, perigosos agentes do comunismo internacional e, por isso, a profissionalização foi construída a duras penas. Inicialmente na docência, depois, também na administração pública, pude atuar em diferentes frentes de trabalho, prestando a contribuição do saber específico da minha área e tenho a convicção de que ela foi importante para tantos resultados que se alcançaram, por conta da sinergia de esforços e conhecimentos dos mais diversos.
Tomando por base os cursos mencionados na fala presidencial, quero apontar aspectos de como eles não podem prescindir de outros conhecimentos além dos inerentes a cada área. Quanto à medicina veterinária e zootecnia, estão diretamente vinculados à cadeia produtiva da carne. O acúmulo de conhecimento nessa área é indiscutível, desde os estudos relativos ao melhoramento genético, até as formas mais adequadas de manejo dos rebanhos, passando pelas demandas que encaminham para a área de agronomia, no que tange à formação de pastagens, seleção de sementes e por aí vai. Os médicos veterinários também são responsáveis pelo controle de sanidade dos animais, pelo estabelecimento do calendário de vacinas e pela fiscalização de seu cumprimento.
A despeito de todo o arsenal específico, isso não impediu que no ano de 2005, Mato Grosso do Sul sofresse um enorme prejuízo por conta do surto de aftosa, iniciado em uma propriedade de Eldorado, depois alastrado para várias outras do município de Japorã. É evidente que esse desastre resultou de uma política de descaso com o controle sanitário, mas não foi só isso. Intrigado com o fenômeno, levantei as condições sócio econômicas de Japorã, quando constatei que se tratava do município com o pior Índice de Desenvolvimento Humano – IDH do Estado. Lá, 16% dos domicílios não dispunham de qualquer instalação sanitária, sequer uma fossa negra. Ora, como um lugar com essas características poderia conviver sem contradições com uma cadeia produtiva tão sofisticada como a da carne? Quando o gado dispõe de melhores condições do que pessoas, no limite, esse descompasso eclode e seu custo foi altíssimo para o país, que ficou impedido de exportar a carne aqui produzida. A esse respeito escrevi à época um artigo intitulado Lições de Japorã, publicado por este jornal.
Recentemente assistiu-se à tragédia do Muzema, na cidade do Rio de Janeiro. Claro que nela há ingredientes dos mais sórdidos, como a ganância de alguns, o poder paralelo das milícias, a negligência de muitos, a omissão do estado e da autarquia responsável, que deveriam fiscalizar e impedir que obras sem as mínimas condições técnicas fossem edificadas. Evidente que não se trata de um problema de engenharia; a questão da habitação transcende à atuação de engenheiros e, para enfrenta-la, é preciso a abordagem transdisciplinar, com a participação de muitos saberes, inclusive aqueles atinentes às ciências humanas.
Por derradeiro, tem-se a medicina. Nossas autoridades deveriam se informar e saber que o conceito ampliado de saúde contempla inúmeras dimensões, não só a biológica. Há muito já se sabe que outros determinantes, além do funcionamento do corpo, interferem no fenômeno saúde-doença. Tanto que, a partir das diretrizes curriculares para a área da saúde, editadas em 2001, tem-se clara a necessidade da abordagem biopsicossocial para assegurar a adequada formação dos profissionais da área, que não devem limitar seus estudos às matérias de cunho biológico.
Nesse particular, tive a oportunidade de participar, como sociólogo, da elaboração do projeto pedagógico e, depois, da implantação do curso de medicina da Uniderp, onde atuei como tutor e coordenador de módulos, durante dez anos; participei também da elaboração do projeto pedagógico do curso de medicina da UEMS. Os dois cursos têm um eixo que é o ensino orientado à comunidade. Para tanto, os estudantes vivenciam o cotidiano de equipes de saúde da família, para conhecer o universo dos cidadãos que usam o Sistema Único de Saúde e dos trabalhadores que nele atuam. Ao lado desse eixo, há a ênfase nas habilidades médicas, dentre as quais tem destaque a comunicação, indispensável ao futuro profissional para se relacionar com seus pares, outros membros da equipe de saúde e com os pacientes. Assim, profissionais da área de humanas são recrutados para contribuir com a formação de médicos.
Com esses exemplos, tem-se claro o quanto o presidente e seu ministro da educação precisam informar-se, conhecer o funcionamento das coisas, romper com a visão estreita do senso comum, para compreenderem essas questões em toda a sua complexidade. Basta desse discurso vazio de campanha, chega de factoides, sejam sérios e governem com juízo.

Paulo Cabral, Sociólogo e professor.

Foto Gerson Oliveira / Correio do Estado.